quinta-feira, 20 de maio de 2010

Dr.House, a coxa de frango e o whisky

Hoje resolvi perder 30 minutos, enquanto roia uma coxa de frango em casa, para tentar entender o “fenômeno House”.Ouço falar da tal série de TV há bastante tempo, algumas pessoas próximas a mim acompanham regularmente, já vi não sei quantos anúncios com a cara de ressaca de whisky batizado do protagonista.Costumo ser insensível ao sucessos de produtos como esse, e muitas vezes, mesmo sabendo que não me custará quase nada, tenho um misto de preconceito e preguiça de dar chance a alguma eventual curiosidade diante de tanta popularidade e sucesso. Parei de zapear quando apareceu na tela a cara do doutor House e refleti “meia horinha, vai?”.
Passados 3 minutos, a primeira impressão: esgotou. Não há mais argumento. Séries de TV são produzidas desde que existe TV. Atualmente estão no ar, nos canais abertos e fechados, mais de 50 delas (só para citar as da terra do Dr. House), com episódios semanais e colecionando, em media, cinco anos de existência cada. Haja assunto? Não há. Esgotou. Só apelando.No caso da minha análise à referida, esta constatação me ajudo a compreender a segunda impressão: parece (e é) uma fusão da fórmula dos cansativos seriados de rotina hospitalar com os de investigações criminais. Estão lá os pacientes moribundos sendo empurrados às pressas em macas, os tubos, as sondas, as descrições de procedimentos, e também estão lá a equipe de especialistas em investigação, o experiente e cheio de personalidade líder, as reuniões para análises das pistas, a correria de cada um para o respectivo posto em busca de uma bactéria no sangue, uma mancha no pulmão, um fungo na saliva... e o grande final, quando o mistério é revelado.Um fã defensor pode argumentar “ah, mas isso é de menos. A trama geral é apenas um suporte para o desenvolvimento das atuações, de uma personagem bem construída, interessante, engraçada”. Que a pretensão dos realizadores vai por aí, eu percebi. A questão é, convence? Pelo jeito sim. Milhões de espectadores e acadêmicos, desses que entregam bichos de ouro, estão convencidos.
Vou tentar explicar o porquê de eu não estar entre aqueles. Uma boa obra de ficção é minimamente coerente com a verossimilhança em seu universo. Personagens só são interessantes quando são especiais, incomuns, têm super-poderes ou coragem acima da média, nenhum senso do ridículo ou realizadores de freqüentes feitos extraordinários . Cada autor usa a liberdade da ficção para criar seu universo, seja mais realista ou surrealista, para atrair o interesse do público, que quer sempre mais que uma reprodução de sua própria rotina (nem o Big Brother tem vida real).
Então, ora, como uma série que se preocupa com esmero com a perfeição da maquiagem na reprodução da aparência física de uma pessoa em estado terminal de doença X (verdade do universo realista), que quando pretende ilustrar uma situação em que o paciente deve ser examinado por endoscopia, mostra um túnel gosmento real (verdade do universo realista), passa por cima da coerência ao apresentar uma abordagem pretensamente realista de pessoas que não existem? Elas não existem! O doutor House não existe, aquela equipe de papanatas que ciscam a sua volta não existe, aquela chefe do hospital (não sei se é do hospital, ok. Chefe do House) que dá conselhos e sermõezinhos com ar de tia do jardim de infância e abre a janela do quarto quando acordada no meio da noite para pacientemente ouvir o que tem a dizer um insone e empapado House não existe!
Os diálogos são de um absurdo risível, a liberdade que o protagonista tem para conduzir procedimentos irresponsavelmente arriscados, a ausência de conseqüências normais – num mundo real – e de repercussão além de duas trocas de olhares arregalados dos jovens colegas (eles quase não fazem outra coisa) diante das brincadeirinhas de médico de bonecas, o tempo que gastam com filosofias rasteiras enquanto o doente implora por uma ampola de penicilina, ou amoxicilina... A tentativa de cumprir os 30 minutos de House foi interrompida quando a chefe, depois de saber que o danadinho simulou uma eutanásia para iludir e examinar um paciente miseravelmente consternado com o fim (e que antes de receber a injeção me saiu com “obrigado. Eu sempre quis saber como é do outro lado”), deu a bronquinha “House, médicos cuidam de pessoas. Não matam pessoas” – com aquela cara de tia de infantário.
E o humor? Ou não percebi, ou é mesmo fraco, por trás de uma máscara de sofisticação. O fato é que os músculos da minha cara só trabalharam pela carne de frango.
Prefiro o House da cara de ressaca de whisky falso. Aquele é mais autêntico.